04/03/2016

A Vida Não é Uma Linha Reta



Absorto na minha leitura, regresso a casa sentado no comboio. Subitamente, de outra carruagem surge um garoto dos seus 12 anos, cabelo alourado, figura franzina e o olhar visivelmente assustado. Agacha-se ao meu lado, usando-me como escudo para se esconder de algo...ou de alguém. "Está tudo bem?" - pergunto, surpreendido com a sua atitude. Balbuciando, o miúdo faz-me entender que está em fuga de alguém que o persegue. O seu olhar atemorizado leva-me a mudar para outro lugar no meio da carruagem, onde ambos nos podemos sentar junto de outros passageiros e dali procuro avistar quaisquer indivíduos suspeitos ao correr de toda a longitude do combóio, mas em vão.


 Prestes a chegar ao meu apeadeiro, continuo sem vislumbrar qualquer movimentação nas outras carruagens que justifique o nervosismo do rapazito, evidente no seu olhar e comportamento desassossegado. O combóio detém-se na estação. Despeço-me. Face a um compromisso familiar, tenho que saír. Não... escolho saír. Precisamente nesse momento, cerca de três adolescentes de considerável estatura transitam de uma carruagem para aquela de onde eu justamente acabara de saír.


Em segundos, da plataforma da estação cruzo olhares com o rapaz no interior da carruagem, através da janela desta, e imediatamente percebo a razão de todo o seu pavor. Isso deve ter ficado bem visível no meu rosto pois, por gestos, pergunta-me se "eles" vêm lá. Pesaroso, confirmo com um aceno.


Enquanto o combóio retoma a sua marcha, vejo as silhuetas dos jovens que avançam pelo interior da composição e a última cena que me fica na retina é uma expressão de profundo desespero e agonia no rosto do catraio, enquanto esconde a cabeça entre os joelhos depois de os avistar.


Deste episódio restam apenas alguns "ses". Se o houvesse feito saír comigo naquela estação? Se eu tivesse permanecido com ele até o deixar em porto seguro? Mas, para isso, eu teria que interromper a minha agenda, rever a ordem das minhas prioridades, relegar para segundo plano os meus compromissos inadiáveis e focar-me no que era realmente importante naquele momento e não no que era urgente.


Que dificuldade, por vezes, em interromper os nossos assuntos pessoais para oferecer um minuto de atenção, em nos desviarmos alguns metros do nosso trajeto num gesto de solidariedade ou gastarmos um pouco do nosso preciosíssimo tempo a favor de alguém atrapalhado e aflito. Mantemo-nos inflexíveis no rumo que traçámos e não admitimos interrupções. Mas até o mais básico GPS consegue calcular rotas alternativas àquela que planeámos inicialmente...



Cada encontro inoportuno que baralha os nossos planos e nos interrompe a marcha e o raciocínio, sacode-nos e relembra-nos que não somos o centro do universo, que há na vizinhança outras vidas, outros mundos além do nosso.


Há uma história bíblica que nos remete precisamente para esta realidade, a do Bom Samaritano, no evangelho de Lucas (capítulo 10:30-35). Neste relato, um homem em viagem é atacado por assaltantes que o deixam espancado e inconsciente. É avistado primeiramente por um sacerdote e depois por um levita, figuras de autoridade religiosa, mas ambos, mesmo que sentindo pena do homem, preferem fingir nada ver, passando ao largo e seguindo o seu caminho. Ainda hoje, não é invulgar vermos cenas como esta, sobretudo nas grandes metrópoles. A história termina quando surge o bom samaritano, o qual não só se desvia do seu caminho para socorrer um homem roubado e espancado, como separa do seu tempo e recursos para o ajudar. E nós, como reagimos quando nos interrompem o descanso, o sono, uma tarefa ou projeto em que estamos envolvidos?


Erramos ao partir da premissa que se não cuidarmos da nossa vida e interesses, mais ninguém o fará, quanto mais gastarmos tempo com os problemas dos outros. A vida de Job, um milionário que perdeu todos os seus bens e família numa série de catástrofes, mudou drasticamente após este interceder a favor de alguns dos seus amigos em dificuldades (Job 42:10). 


Quando nos desviamos momentaneamente da nossa rota e disponibilizamos do nosso tempo, não perdemos, todos ganham. E, se no momento parece que saímos a perder, é apenas para ganharmos mais adiante. É que sempre haverá um dia em que precisaremos que alguém se desvie do seu caminho por nossa causa. Afinal, a vida não é uma linha reta.

Fotografias: Carlos Pinto Leite