Absorto na
minha leitura, regresso a casa sentado no comboio. Subitamente, de outra
carruagem surge um garoto dos seus 12 anos, cabelo alourado, figura franzina e
o olhar visivelmente assustado. Agacha-se ao meu lado, usando-me como escudo
para se esconder de algo...ou de alguém. "Está tudo bem?" - pergunto,
surpreendido com a sua atitude. Balbuciando, o miúdo faz-me entender que está
em fuga de alguém que o persegue. O seu olhar atemorizado leva-me a mudar para
outro lugar no meio da carruagem, onde ambos nos podemos sentar junto de outros
passageiros e dali procuro avistar quaisquer indivíduos suspeitos ao correr de
toda a longitude do combóio, mas em vão.
Prestes a
chegar ao meu apeadeiro, continuo sem vislumbrar qualquer movimentação nas
outras carruagens que justifique o nervosismo do rapazito, evidente no seu
olhar e comportamento desassossegado. O combóio detém-se na estação.
Despeço-me. Face a um compromisso familiar, tenho que saír. Não... escolho
saír. Precisamente nesse momento, cerca de três adolescentes de considerável
estatura transitam de uma carruagem para aquela de onde eu justamente acabara
de saír.
Em segundos, da
plataforma da estação cruzo olhares com o rapaz no interior da carruagem,
através da janela desta, e imediatamente percebo a razão de todo o seu pavor.
Isso deve ter ficado bem visível no meu rosto pois, por gestos, pergunta-me se
"eles" vêm lá. Pesaroso, confirmo com um aceno.
Enquanto o
combóio retoma a sua marcha, vejo as silhuetas dos jovens que avançam pelo
interior da composição e a última cena que me fica na retina é uma expressão de
profundo desespero e agonia no rosto do catraio, enquanto esconde a cabeça
entre os joelhos depois de os avistar.
Deste episódio
restam apenas alguns "ses". Se o houvesse feito saír comigo naquela
estação? Se eu tivesse permanecido com ele até o deixar em porto seguro? Mas,
para isso, eu teria que interromper a minha agenda, rever a ordem das minhas
prioridades, relegar para segundo plano os meus compromissos inadiáveis e
focar-me no que era realmente importante naquele momento e não no que era
urgente.
Que
dificuldade, por vezes, em interromper os nossos assuntos pessoais para
oferecer um minuto de atenção, em nos desviarmos alguns metros do nosso trajeto
num gesto de solidariedade ou gastarmos um pouco do nosso preciosíssimo tempo a
favor de alguém atrapalhado e aflito. Mantemo-nos inflexíveis no rumo que
traçámos e não admitimos interrupções. Mas até o mais básico GPS consegue
calcular rotas alternativas àquela que planeámos inicialmente...
Cada encontro
inoportuno que baralha os nossos planos e nos interrompe a marcha e o
raciocínio, sacode-nos e relembra-nos que não somos o centro do universo, que
há na vizinhança outras vidas, outros mundos além do nosso.
Há uma história
bíblica que nos remete precisamente para esta realidade, a do Bom Samaritano,
no evangelho de Lucas (capítulo 10:30-35). Neste relato, um homem em viagem é
atacado por assaltantes que o deixam espancado e inconsciente. É avistado
primeiramente por um sacerdote e depois por um levita, figuras de autoridade
religiosa, mas ambos, mesmo que sentindo pena do homem, preferem fingir nada
ver, passando ao largo e seguindo o seu caminho. Ainda hoje, não é invulgar
vermos cenas como esta, sobretudo nas grandes metrópoles. A história termina
quando surge o bom samaritano, o qual não só se desvia do seu caminho para
socorrer um homem roubado e espancado, como separa do seu tempo e recursos para
o ajudar. E nós, como reagimos quando nos interrompem o descanso, o sono,
uma tarefa ou projeto em que estamos envolvidos?
Erramos ao
partir da premissa que se não cuidarmos da nossa vida e interesses, mais
ninguém o fará, quanto mais gastarmos tempo com os problemas dos outros. A vida
de Job, um milionário que perdeu todos os seus bens e família numa série de
catástrofes, mudou drasticamente após este interceder a favor de alguns dos
seus amigos em dificuldades (Job 42:10).
Quando nos
desviamos momentaneamente da nossa rota e disponibilizamos do nosso tempo, não
perdemos, todos ganham. E, se no momento parece que saímos a perder, é apenas
para ganharmos mais adiante. É que sempre haverá um dia em que precisaremos que
alguém se desvie do seu caminho por nossa causa. Afinal, a vida não é uma linha
reta.
Fotografias: Carlos Pinto Leite