24/10/2014

AFETOS COLATERAIS



O semblante do adulto é ainda jovem, veste casualmente e ronda a casa dos 40 anos. O rapazito, de rosto simpático, terá os seus 8 ou 9 anos e a cumplicidade entre ambos é evidente. O trajeto entre os apeadeiros subterrâneos do metro de Lisboa é o cenário que dá continuidade às conversas e brincadeiras que se iniciaram no madrugar de casa. A caminho da escola, pai e filho sintonizam olhares e calibram afetos.

Há dias em que disputam concentrados a vitória nas respostas de um conhecido jogo de perguntas e respostas da televisão no 'smartphone'. Outros há em que adivinhar as personagens dos cromos da bola na mão do cachopo é o desenferrujar matinal dos neurónios. Hoje, o braço do adulto insiste em apertar a criança contra o seu peito. Esta, por sua vez, sucumbe ao afeto e, consolada, aninha repetidamente o rosto no abraço do pai, de olhos fechados. Penso: "sim, é (também) disto que deve ser feito um relacionamento entre pai e filho, de conversas secretas, cumplicidade, o toque e o olhar". Encerrados na sua bolha invisível e alheios a tudo ao redor, protagonizam uma reconfortante cena para quem, como eu, os observa.

Reconfortante como um chocolate quente num dia de Inverno, como um abraço sentido e sem palavras, como adormecer uma criança no colo. Expressar afeto através de um beijo, um abraço envolvente ou de um gesto de ternura conforta quem recebe e quem dá... mas também a quem observa por perto.

Corro o risco de generalizar mas, quando testemunhamos o expressar de afetos, seja entre pessoas do nosso círculo mais íntimo ou entre puros desconhecidos, sentimos um certo conforto e bem-estar. Somos como que "puxados" para o meio da cena e difícil é que esse quadro não nos arranque um sorriso ou um olhar derretido.


Mesmo que perante desconhecidos, facilmente há algum ponto em que nos revemos nesses gestos e os transportamos para os nossos laços familiares e de amizade (ou para a ausência deles), em que esses gestos nos colocam um brilho nos olhos, um sorriso no coração.


Seja qual for o nosso tipo de personalidade, espontânea e efusiva ou reservada, não tem por que ser um obstáculo à expressão dos nossos sentimentos, basta sermos criativos. Se não nos sentimos confortáveis em verbalizá-los, podemos manifestá-los sob forma escrita, por gestos e atitudes. A imaginação é o nosso limite.

 
Na Bíblia, existe um relato (1) em que Deus afirma publicamente o seu amor por Jesus numa declaração que causa impacto, não apenas no próprio Jesus, mas também nos discípulos que o acompanham, mesmo que não a compreendendo. E, logo de seguida, um Messias que acalma os discípulos por meio do toque. Tal como o seu toque abençoava as crianças (2). Quando os apóstolos Paulo e Silas foram encarcerados numa masmorra, por volta da meia-noite "cantavam hinos" a Deus, o que foi certamente uma lufada de ar fresco para os demais prisioneiros que, admirados, os escutavam (3).

 
O poder de simples afetos é extraordinário. Um sorriso descarado ou um inesperado piscar de olho funcionam como quebra-gelo. Têm a capacidade de desarmar o espírito mal-humorado. Onde quer que aconteçam, são bálsamo para almas carregadas e deprimidas, inspiram bons sentimentos, desanuviam mentes conturbadas e mudam atmosferas pesadas.


O combóio detém-se. Saímos na mesma estação, mas separamo-nos em direções opostas. À minha volta, o ar é agora mais leve.


1) Mateus 17:5-8
2) Mateus 19:13-15
3) Atos 16:23-25


Carlos Pinto Leite

12/04/2014

O INCHAÇO FATAL DO EGO

"Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo" (John Donne, poeta e clérigo inglês, séc. XVI)

Normalmente associamos provas ou testes a dificuldades, a adversidade, a épocas de dor e sofrimento em que, de alguma maneira, o nosso caráter é posto à prova. Mas o nosso caráter também pode ser testado em condições que são tudo menos desagradáveis ou dolorosas. Se somos alvo de um elogio, de reconhecimento público ou se alcançamos sucesso profissional, o nosso ego fica naturalmente em alta. Sabe bem, claro que sim. E aqui, pelo menos duas coisas poderão acontecer: reconhecer em humildade que tudo aquilo que alcançámos ou realizámos nunca poderia acontecer sem a ajuda dos outros - e até mesmo de inspiração divina - ou incharmos como um balão, atribuíndo-nos todo o mérito das nossas realizações e sucessos.

RIDÍCULO

E coisas desagradáveis podem suceder a um balão, sobretudo se este contiver excesso de ar. Rodopiar sem nexo, vazando o ar com aquele som ridículo e relaxado que bem conhecemos para terminar como látex flácido no chão. Estamos em fogo, vamos conquistar este e o outro mundo, nada nos pode deter e somos a promessa do ano mas, por alguma contrariedade inesperada ou expectativa irrealista criada por nós mesmos, todo o entusiasmo se esfuma em nada e das expectativas que alimentámos nos outros, não restam senão cinzas de desilusão. O arranque inicial até foi bom, mas a ponta final dececionante. Perdemos o gás.

ENERVANTE

Um balão com excesso de ar tem a capacidade de se tornar irritante em extremo. Quando abrimos muito ligeiramente o seu orifício numa prolongada fuga de ar, é capaz de ensandecer os tímpanos da mais serena das criaturas. Sim, quem gosta de se ouvir interminavelmente, acaba por soar a cana rachada e a falar sozinho porque, entretanto, toda a gente foge espavorida e até o evita se o vê à distância.

IMPRESSIONANTE
Se não houver o cuidado de regular a pressão do ar insuflado, o balão facilmente rebentará por qualquer motivo. É o que acontece se cedermos à ousadia de nos aproximarmos com algum objeto de ponta afiada. Um ego inchado não aceita críticas ou que lhe apontem o que quer que seja. Assim, quando picado, o estouro é geralmente ruidoso e impressionante mas, no fim, alguém lhe sentirá a falta?

Numa cultura em que o individualismo, a auto-suficiência e a competição se instalaram como valores normais, a declaração de John Donne "Nenhum homem é uma ilha" surge como um grito de alarme. A afirmação tão peremptória de Jesus de que sem ele nada podemos fazer (evangelho de João 15:5) incomoda e escandaliza. Parece até um atestado de incompetência à humanidade. E quando o livro de Génesis (2:18) defende que não é bom que o homem esteja só, podemos situar essa declaração não apenas no contexto habitualmente citado de um relacionamento entre homem e mulher, mas também no contexto da amizade, do companheirismo, do trabalho em equipa, da concretização de um sonho ou projeto. A verdade é que juntos e dependendo uns dos outros, talvez caminhemos mais devagar, mas chegamos mais longe! Então, não é mesmo bom que o homem esteja só. Onde nos conduziu o "orgulhosamente sós" do regime salazarista senão a um atraso de décadas em comparação com outras nações? O próprio conceito de família, tão essencial para o desenvolvimento saudável de qualquer pessoa, é plural e exige o relacionamento entre pelo menos duas pessoas. Mas, e o famoso ditado "Mais vale só que mal acompanhado"? Eu diria que estar só pode, por vezes, ser preferível e até mesmo necessário em certas circunstâncias, mas isso não significa que seja o ideal.

Quando nos integramos e expomos em família, numa comunidade ou equipa, beneficiamos de uma excelente terapia em que o nosso ego é esticado e moldado. Percebemos que temos de nos ajustar ao diferente temperamento de familiares e colegas. Aprendemos quais os limites que não devem ser ultrapassados nos nossos relacionamentos.  Aumentamos a nossa sensibilidade para escutar opiniões diversas da nossa e assim percebemos que nem sempre a razão está do nosso lado. Expomo-nos à aprendizagem e correção de erros e, logo, crescemos. Compreendemos que há mais universos além do nosso. Interiorizamos a alegria da partilha e da generosidade. Aprendemos a servir mais os outros e menos os nossos interesses. Eventualmente, chegaremos a compreender que, quando cuidamos dos outros, o benefício que daí resulta é nosso também.

Quando a nossa saúde está em jogo, recorremos a especialistas e a tratamentos que nos restituam a qualidade de vida. Mas a melhor atitude que podemos adoptar é, sem dúvida, a prevenção. E ensinar o nosso ego a viver em família ou equipa é, sem dúvida, uma excelente forma de prevenir o inchaço fatal do ego.