06/06/2009

Crónicas Do Metro – Bife A Cavalo De Orelhas Moucas

“O Reino de Deus está próximo! Deixem de adorar imagens! Deixem a idolatria!” Repetido vez após vez, o apelo ecoava em tom meio cantado, meio lamúria, pela voz grossa da mulher de tez negra que calcorreava sistematicamente as plataformas da estação do metro do Chiado. Envergando uma t-shirt com dizeres evangélicos, avançava decidida por entre as multidões à espera do próximo comboio, apregoando incansavelmente o mesmo apelo, indiferente aos olhares, pasmados uns, outros trocistas, enjoados outros.

“O Reino de Deus está próximo! Deixem de adorar imagens! Deixem a idolatria!” A cena era a repetição de outras, noutras estações do metro, por entre “sprints” de um comboio para outro. Mas, desta vez, o tempo não era problema. Anotei o percurso da mulher. No seu passo de marcha, ciclicamente passava em frente de uma pequena passagem que unia duas plataformas. Algo me incomodava em tudo aquilo. Detive-me aí mesmo e esperei.

O que significam termos como “reino de Deus” e “idolatria” para a maioria das pessoas? Que relevância têm no seu dia-a-dia? Um belo bife será um excelente alimento em si mesmo, mas intragável se cru. Em vez disso, posso optar por cozinhá-lo em suculento molho e especiarias e guarnecê-lo com uma salada de arregalar os olhos mas, se depois lançar a travessa com maus modos em cima da mesa dos convidados, lá se vai a vontade de comer… e de regressar!

“O Reino de Deus está próximo! Deixem de adorar imagens! Deixem a idolatria!”
Biblicamente, a mensagem até era irrepreensível mas apresentada (ou servida) de uma forma incompreensível para a maioria das pessoas, sem relação com o seu dia-a-dia e falha de soluções para os seus problemas. Não encorajava nem era nada animadora. De certa maneira, até era assustadora.
Finalmente, a mulher aproximava-se, fechando mais um ciclo de marcha pelas plataformas.

Interpelei-a sem pensar duas vezes. “Posso fazer-lhe uma pergunta?”, inquiri. Surpreendida, parou a custo encolhendo os ombros, como quem diz “Faz lá a tua pergunta…”.
“Já alguém respondeu positivamente aos seus apelos?” De olhos arregalados, a resposta veio imediata, seca e misteriosa “Só Jesus Cristo o sabe!” E retomou a sua marcha incansável. Fui no seu encalço. “Posso fazer mais uma pergunta?”, insisti repetidamente. “Estou a trabalhar!” – retorquiu rispidamente. E cortou-me as vazas - “Só quando a estação estiver vazia!”
“Hum!”, pensei eu. Ou seja, nunca!...

A mensagem do Evangelho tem poder para levantar, encorajar, restaurar, curar, dar sentido e propósito à vida de cada indivíduo. Mas cada indivíduo é único. Como tal, esta mensagem não pode ser “servida” de uma forma padronizada, sem ter em conta as características que nos distinguem uns dos outros e à margem dos problemas e necessidades que as pessoas enfrentam em dado momento da sua existência.

Então, como servir a refeição espiritual mais requintada do mundo? Colocamos o bife cru no prato? Atiramos com a travessa para cima da mesa? Ou falamos uma linguagem que o mundo realmente entende, sem comprometer a essência do Evangelho?
Aquela mulher não estava ali para ouvir, para responder a perguntas nem tampouco preparada para ser interpelada. Pergunto-me quem realmente lhe deu ouvidos ou quantos realmente a compreenderam.
A verdade é esta: se queremos ser escutados, temos que estar dispostos a escutar primeiro. Sentir os problemas do outro, perceber as suas necessidades e então ganharemos o direito de ser ouvidos.
Queres ser escutado? Então, aprende a escutar quem está perto de ti.

(Carlos Pinto Leite)