12/09/2009

À BOLEIA DE DESCONHECIDOS

Aproximam-se a passos largos as datas das próximas eleições legislativas e autárquicas. Indiscutivelmente, são datas de suma importância no nosso calendário para aqueles que tencionam exercer o direito de voto. Na óptica destes, cada voto conta e pode fazer a diferença. Já outros reagirão com um encolher de ombros. Desiludidos com a classe política e desmotivados pela actual situação económica e social, não há personagem carismática ou cor política que os convença a ir depositar o voto à boca das urnas. “Votar para quê? São todos iguais!...”

Independentemente da nossa posição face à vida política, temos de estar bem conscientes do que significa alhearmo-nos dos próximos actos eleitorais.
Significa abdicar de um direito conquistado (o do voto) o qual, ainda hoje, é negado a milhões de pessoas em vários países.

Significa que é pouco provável que os motivos pessoais do descontentamento se alterem, pelo simples facto de que nada fizemos para isso.
Significa que, desde que tenhamos a casa, o emprego e a conta bancária garantidos, pouco importa quem nos governa.
Significa o risco de entregarmos o governo do país - e das nossas próprias vidas - em mãos menos sérias ou capazes para essa tarefa.
Significa indiferença e passividade.
Significa que deixamos que sejam outros a decidir por nós em questões fundamentais.

Não é todos os dias que o cidadão anónimo tem oportunidade de fazer ouvir a sua voz e de intervir ao nível das esferas de decisão da sociedade. E, se é suposto a Igreja ser sal e luz, os cristãos, mais do que quaisquer outros, têm a obrigação de dar o exemplo e de participar no acto eleitoral. A Igreja quer-se interventiva e influente na sociedade e esta é uma excelente oportunidade de passar da teoria à prática.
“Que diferença faz um voto a mais ou a menos?” Bem, se todos pensarem assim, a diferença será grande! Por isso, resista por uns minutos à tentação do sofá ou da TV. Resista à preguiça e ao desânimo. A abstenção de voto é como um barco sem timoneiro ao leme que navega à deriva, levado pelas ondas e pelo vento.
O desfecho é tão arriscado como aceitarmos boleia de desconhecidos.

(Carlos Pinto Leite)

01/09/2009

A TEMPESTADE


"Os rios levantam o seu ruído, os rios levantam as suas ondas. Mas o Senhor nas alturas é mais poderoso do que o ruído das grandes águas e do que as grandes ondas do mar" (Salmo 93:3 e 4)

O vento assobiava furioso, cortando-me os ouvidos e a respiração. Gigantescas, as ondas elevavam-se inimagináveis metros acima dos meus olhos para se estatelarem com estrondo quase em cima do meu barco.
- “Fica quieta!” – ordenou-me o velho marinheiro.
- “Como posso ficar quieta?” – gritei-lhe, tentando sobrepor-me à ira do vento. “Este barco parece uma casquinha de noz, sacudido de uma lado para o outro, e com estas ondas afundamo-nos não tarda nada!!”

- “Fica quieta!” – ordenou-me novamente o velho marinheiro.
Fulminei-o com um olhar indignado pela resposta e, lançando mão de todos os objectos ao meu alcance, comecei a lançá-los borda fora, na tentativa de evitar o naufrágio iminente.
O rosto crispado pelo sol e pelo sal do marinheiro surgiu, resoluto, à minha frente e, colocou as suas mãos sobre as minhas.
- “Aquieta-te”! – instou-me. Sacudi-lhe as mãos.
- “É só isso que tens para me dizer? Não sabes dizer mais nada? Fica tu quieto e deixa-me agir, já que não fazes nada!...”
Agarrei num balde e desatei a lançar fora a água que já se ia acumulando no fundo do barquito. Subitamente, fomos elevados na crista de uma enorme onda e apenas tive tempo de me segurar junto à popa onde o marinheiro se sentara. O estômago quase me saltava da boca.
- “Agora não é tempo para agir!” – reiterou ele com voz firme.
O vento açoitava-nos com uma chuva cortante como lâminas. Coloquei os braços à volta da cabeça para me proteger.
- “Ai sim? Então o que sugeres?” – perguntei em tom sarcástico.
- “Eu é que sei!” – retorquiu ele. Os músculos retesados dos seus braços possantes ergueram a âncora da embarcação, arremessando-a para o fundo das águas, arrastando a corrente atrás de si num ruído ensurdecedor.
- “Agora esperamos! Isto vai passar. Se esperarmos, sempre passa!” – afiançou.
Pela primeira vez, as palavras do lobo do mar pareciam ter alguma lógica.
- “Tenho mais força que esta tempestade” – garantiu ele.
Revirei os olhos de fastio. O meu ainda débil grau de confiança imediatamente regrediu perante a absurda afirmação.
Os minutos arrastavam-se, pesados e lentos. O diálogo emudeceu quase uma hora.
Impelidas pelo vento, as vagas iam e vinham num rugido assustador.
– “Então, e agora?... Não dizias que eras mais forte que a tempestade?...”
Os olhos do homem brilharam, indiferentes ao tom irónico da minha pergunta.
- “E sou! As tempestades vêm e vão e não tenho que as acalmar a todas”.
- “Então, se não és capaz de o fazer como dizes, o que estás aqui a fazer?”
- “Não estou preocupado com esta tempestade. É só mais uma. Outros já passaram pelo mesmo e fizeram-me as mesmas perguntas que tu”.
O vento redobrou de violência.
“Não estou aqui por causa desta tempestade” – rematou o velho marinheiro – “Com ela podes tu bem. Estou aqui para acalmar a tempestade do teu coração!”


(Carlos Pinto Leite)

24/07/2009

SEXO, DINHEIRO E CHOCOLATE


Estranhamente, muito daquilo que é fonte de prazer ou que de alguma forma lhe está associado, carrega sobre si uma carga condenatória e proibitiva. A comida, por exemplo. Basta observar com mínima atenção a publicidade nos media e os “catrapázios” de rua para nos depararmos com frases publicitárias onde os conceitos de pecado e tentação estão frequentemente presentes. Desde o iogurte “Pecado dos Anjos” à “tentação irresistível” de um hambúrguer ou pizza até ao “doce pecado” de um gelado ou chocolate. Não há nada a fazer: ou nos contentamos com frugais saladas e sopas ou estamos sujeitos a levar a qualquer momento uma paulada na consciência por saborearmos o prazer proibido.

E o que dizer do sexo? Tempo houve em que era considerado legítimo apenas para fins de procriação, reprimido e, finalmente, transformado em assunto tabú, silenciado nas conversas em público. Considerações à parte sobre o contexto intrínseco ou extrínseco ao casamento e aos relacionamentos hetero e homossexuais, a maior expressão humana de amor e entrega mútua chegou ser considerada quase pecado mortal por se pensar que na base tal acto estariam instintos puramente carnais e animais, nunca supondo que o acto sexual consciente e maduro poderia estar revestido de uma forte espiritualidade, como na realidade está.

Chegou-se ao ponto de deturpar completamente o sentido da afirmação bíblica de que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”, eliminando pura e simplesmente a palavra “amor” do seu início. Em consequência, o dinheiro (e não o amor ao dinheiro) passou a ser a raiz de todos os males. Nesta linha de pensamento, quem possuir recursos financeiros acima da média será invariavelmente catalogado de egoísta, avarento, corrupto e sem escrúpulos.

O legalismo é uma “coisa” asquerosa e abjecta que, com olhar reprovador mas também subtil criticismo camuflado por mansas palavras, tem o condão de fulminar tudo o que propicie prazer, alegria, bem-estar ou auto-recompensa. Neste âmbito, uma ida ao cinema, o simples uso de maquilhagem, um copo de vinho ou, tão simplesmente, a capacidade de disfrutar os prazeres simples da vida sem culpa, poderão ser altamente reprováveis. O legalista não consegue viver sem uma dose mínima de culpa e complexo e tampouco suporta quem, ao seu redor, viva a vida sem complexos.

Nem o sexo, nem o chocolate ou as riquezas são maus em si mesmos. Depende unicamente do uso (correcto ou não) que fizermos deles. Serão nocivos se os transformarmos no nosso deus, na nossa única razão de viver, em vez de meios para uma vida saudável.
Crescemos, assim, numa cultura e mentalidade de valores invertidos, onde os mais elementares prazeres da vida (comida ou sexo) passaram a estar associados ao proibido e ao pecado. E tudo o que é de facto santo e virtuoso, é conotado com a tristeza, austeridade, pobreza, sofrimento e… ausência de prazer. Tanto assim é que essa ainda é a conotação vulgarmente atribuída a Deus e à Igreja em Portugal. O cidadão português comum não associa Deus à alegria nem a Igreja a celebração festiva, muito pelo contrário.

O legalista tem o poder de desvirtuar tudo aquilo em que toca e de transformar o que é realmente bom em algo condenável e pecaminoso. Deu-se uma inversão total de valores: o prazer ficou associado ao pecado (ou seja, o pecado é o melhor da vida) e o sofrimento à santidade e virtude, o que, convenhamos, não as torna muito atractivas.

Urge desmistificar esse engano e deixar para trás o fardo da culpa e condenação que condiciona pensamentos e actos.

Deus nunca foi um velho amargo, sempre à espreita e desejoso de nos dar uma paulada ao menor deslize. Então, saiba apreciar os dons divinos (no sentido literal da palavra): o sexo, um bom copo de vinho ou o seu chocolate. Se possível, disfrute dos seus recursos. Mas saiba também fazer o uso correcto dos mesmos. Liberte-se de culpa e de complexos! Viva a vida. Eu – mea culpa - tento fazer o mesmo.

(Carlos Pinto Leite)

06/06/2009

Crónicas Do Metro – Bife A Cavalo De Orelhas Moucas

“O Reino de Deus está próximo! Deixem de adorar imagens! Deixem a idolatria!” Repetido vez após vez, o apelo ecoava em tom meio cantado, meio lamúria, pela voz grossa da mulher de tez negra que calcorreava sistematicamente as plataformas da estação do metro do Chiado. Envergando uma t-shirt com dizeres evangélicos, avançava decidida por entre as multidões à espera do próximo comboio, apregoando incansavelmente o mesmo apelo, indiferente aos olhares, pasmados uns, outros trocistas, enjoados outros.

“O Reino de Deus está próximo! Deixem de adorar imagens! Deixem a idolatria!” A cena era a repetição de outras, noutras estações do metro, por entre “sprints” de um comboio para outro. Mas, desta vez, o tempo não era problema. Anotei o percurso da mulher. No seu passo de marcha, ciclicamente passava em frente de uma pequena passagem que unia duas plataformas. Algo me incomodava em tudo aquilo. Detive-me aí mesmo e esperei.

O que significam termos como “reino de Deus” e “idolatria” para a maioria das pessoas? Que relevância têm no seu dia-a-dia? Um belo bife será um excelente alimento em si mesmo, mas intragável se cru. Em vez disso, posso optar por cozinhá-lo em suculento molho e especiarias e guarnecê-lo com uma salada de arregalar os olhos mas, se depois lançar a travessa com maus modos em cima da mesa dos convidados, lá se vai a vontade de comer… e de regressar!

“O Reino de Deus está próximo! Deixem de adorar imagens! Deixem a idolatria!”
Biblicamente, a mensagem até era irrepreensível mas apresentada (ou servida) de uma forma incompreensível para a maioria das pessoas, sem relação com o seu dia-a-dia e falha de soluções para os seus problemas. Não encorajava nem era nada animadora. De certa maneira, até era assustadora.
Finalmente, a mulher aproximava-se, fechando mais um ciclo de marcha pelas plataformas.

Interpelei-a sem pensar duas vezes. “Posso fazer-lhe uma pergunta?”, inquiri. Surpreendida, parou a custo encolhendo os ombros, como quem diz “Faz lá a tua pergunta…”.
“Já alguém respondeu positivamente aos seus apelos?” De olhos arregalados, a resposta veio imediata, seca e misteriosa “Só Jesus Cristo o sabe!” E retomou a sua marcha incansável. Fui no seu encalço. “Posso fazer mais uma pergunta?”, insisti repetidamente. “Estou a trabalhar!” – retorquiu rispidamente. E cortou-me as vazas - “Só quando a estação estiver vazia!”
“Hum!”, pensei eu. Ou seja, nunca!...

A mensagem do Evangelho tem poder para levantar, encorajar, restaurar, curar, dar sentido e propósito à vida de cada indivíduo. Mas cada indivíduo é único. Como tal, esta mensagem não pode ser “servida” de uma forma padronizada, sem ter em conta as características que nos distinguem uns dos outros e à margem dos problemas e necessidades que as pessoas enfrentam em dado momento da sua existência.

Então, como servir a refeição espiritual mais requintada do mundo? Colocamos o bife cru no prato? Atiramos com a travessa para cima da mesa? Ou falamos uma linguagem que o mundo realmente entende, sem comprometer a essência do Evangelho?
Aquela mulher não estava ali para ouvir, para responder a perguntas nem tampouco preparada para ser interpelada. Pergunto-me quem realmente lhe deu ouvidos ou quantos realmente a compreenderam.
A verdade é esta: se queremos ser escutados, temos que estar dispostos a escutar primeiro. Sentir os problemas do outro, perceber as suas necessidades e então ganharemos o direito de ser ouvidos.
Queres ser escutado? Então, aprende a escutar quem está perto de ti.

(Carlos Pinto Leite)

26/04/2009

Crónicas do Metro - METRO HIP HOP

Apelo I. “A vossa moeda, por favor!”, clama o homem com voz sonante. E insiste, “Tenham a bondade de me auxiliar com a vossa moedinha, por favor!”. Chocalha sonoramente as moedas no copo de plástico em sua mão para chamar a atenção enquanto avança a passos decididos carruagem do metro afora. O clamor repete-se, insistente, entrecortado por um profundo suspiro quando as moedas tardam em cair no copo ou, talvez, pelo cansaço da repetição maquinal do apelo. Cego de nascença, rapidamente some-se na multidão apinhada na carruagem.
Ele passou e eu fiquei a ver, yo.
Apelo II. “Tenham a bondade de me auxiliar com a vossa moeda, por favor!”. Desta vez, o lamento triste ressoa, feminino, de um rosto sem olhos, as órbitas totalmente cobertas pelas pálpebras. Impossível não ficar impressionado com a visão de um tal rosto que nunca viu luz. Mas nem por isso as moedas são depositadas com maior fartura na caixa de esmolas que traz pendurada ao pescoço. Duas moedas tilintam quase de seguida no recipiente. “Obrigado! Boa sorte e saúde.”, debita a mulher, lacónica pela incontável repetição diária do mesmo gesto e da mesma frase.
Ela passou e eu fiquei a ver, ya.


Apelo III. Começa lá ao fundo por um som indistinto de pancadas sonoras no metal dos varões de apoio aos passageiros. Vai crescendo gradualmente, complementado por um batuque super-ritmado na caixa de esmolas do que parece ser um canivete. Non stop, faz compasso, assobiando e percussionando freneticamente no chão a vara de invisual que detém na mão. Trinta e tal anos, pára subitamente para declamar acapella o refrão hip hop “Ora, podem crer que eu continuo a agradecer toda a bondade e possibilidade em me auxiliar!”. Perante olhares de admiração, prossegue o refrão até ao final do comboio, retomando novamente o batuque e a percussão, rematados pelo assobio. Aqui e ali, passageiros depositam uma moeda perante a marcha do talentoso invisual.
Ele passou, ya, e imediatamente desejei ter mais no bolso do que o cartão multibanco. Senti um enorme desejo de me colar ao seu ritmo hip hop, de lhe perguntar o nome e dizer o quão fantástico era e como me deixava bem disposto. Quis ser alguém influente na televisão, pois poderia mostrar ao mundo o talento inato deste homem e, assim, alterar o curso descolorido da sua vida. Imaginei-o já estrela célebre de tremendo sucesso, potenciado pela franzina figura de pernas arqueadas, rosto chupado e irreverência cáustica quando as moedas tardam em fazer-se ouvir. Senti-me inspirado. Eis duas atitudes opostas perante a mesma circunstância.
Ninguém está imune às adversidades da vida. Em dado momento, sempre teremos que passar pelo fogo ou por águas turbulentas. Mas é aí, aha, que a nossa postura e atitude farão toda a diferença. A lamentação e o queixume nada alteram. Não nos libertam dos problemas nem tampouco cativam alguém para nos ajudar. E é difícil ajudar quem se lamenta com pena de si mesmo. A vitória sobre a adversidade começa com uma mudança de atitude: umas vezes aguentando firme a tempestade, outras vezes indo à luta, mas calando definitivamente o espírito de auto-comiseração e a tentação de nos remetermos a um canto para lamber feridas. Seremos, então, um estímulo para quem nos observa em idêntica situação.
Hey ya, já tens o teu refrão hip hop?

(Carlos Pinto Leite)

29/03/2009

Crónicas Do Metro - Roleta Russa


O homem, alto, esguio e de tez escura entrou na carruagem do metro. Quase imediatamente, um odor insultuoso aos sentidos emanou da figura andrajosa e os olhares caíram por instantes sobre o seu cabelo sujo e hirsuto, a barba rala e as roupas surradas, para logo se desviarem rapidamente daquele desagradável quadro da condição humana. Provavelmente, todos nós, passageiros, teremos pensado o mesmo: “Um bêbado… um drogado”. Mão estendida à esmola, iniciou o peditório. Os olhares, de compaixão alguns, de censura outros, de indiferença a maioria. O que pode levar um homem a uma situação destas? Como se explica que indivíduos com situação familiar e económica estáveis se encontrem, 20 ou 30 anos depois, a viver na rua e a dormir em caixas de cartão? Que circunstâncias do passado terão conduzido o mendigo do metro a esta situação degradante e humilhante?
Que factores podem conduzir as pessoas à mendicidade, pobreza, alcoolismo, toxicodependência e até morte prematura? É certo que ninguém nasce alcoólico ou toxicodependente. E a fatalidade de um destino que já estava traçado é também um argumento gasto e inválido.
Na sua maior parte, a nossa vida, presente e futura, é o produto das nossas escolhas do passado. A vida profissional que hoje temos é, em boa parte, produto das opções curriculares que fizemos no tempo de escola. O nosso casamento e família actuais resultam da pessoa que escolhemos para nosso cônjuge e do tipo de relacionamento que decidimos ter com ela. Não poucas vezes, o estado mais ou menos caótico da nossa vida familiar, espiritual, financeira ou outra foi (e é) influenciado por aqueles que elegemos para nossos amigos.
Quando éramos crianças, os nossos pais decidiam por nós. Agora que temos a capacidade de o fazer sozinhos (seja para o bem ou para o mal), somos os únicos responsáveis pelas nossas escolhas e pelas consequências que daí nos advierem. O mesmo sucederá com os nossos filhos. Quando crescerem, quererão tomar as suas próprias decisões sem a nossa interferência. Faz parte do processo de crescimento.
Voltemos ao mendigo do metro. Que decisões o terão conduzido àquele estado? Um sábio conselho de mãe rejeitado na juventude? A influência de “amigos da onça”? A precipitação num relacionamento condenado ao fracasso? O esbanjamento dos seus recursos em vícios? Nunca o saberemos. Mas se não investirmos o maior dos cuidados nas opções que em cada encruzilhada teremos de tomar, não estaremos livres de cair na mesma situação que ele.
Escolhas feitas sem a orientação de Deus são uma autêntica roleta russa cujo desfecho imprevisível tanto pode jogar a favor como contra nós. Buscar a orientação de Deus antes de tomarmos decisões como a aquisição de um carro ou casa, a escolha de um curso, de um emprego ou um casamento pode parecer uma posição demasiado extremista e religiosa (fanática até) e indiciadora de fraqueza mas, na verdade, é sabedoria em estado puro que certamente evitará dissabores no futuro. Isto nada tem a ver com declarações do tipo “Vamos lá a ver o que isto dá… e seja o que Deus quiser!” Isso não é fé, é “fezada”! Quando damos um passo em fé, enfrentamos o desconhecido mas sabemos que Deus estará um pouco mais à frente. Fezada é deixar a nossa vida ao sabor do acaso e brincar com o nosso futuro. E depois revoltamo-nos com situações que nós mesmos provocámos…
Evidentemente, certas situações exigem de nós reflexos rápidos mas, de uma forma geral, não é tanto a quantidade de tempo de reflexão que determina o sucesso das nossas decisões mas, sim, a qualidade do aconselhamento. Um conselho de um amigo sábio e experiente pode ser uma forma de obtermos a direcção de Deus e determinante para o sucesso das nossas escolhas.
Não deixe que as emoções ou a precipitação orientem as suas escolhas. Experimente e procure saber a opinião de Deus acerca das decisões importantes que está prestes a tomar. Não deixe que o presente hipoteque o seu futuro. Caso contrário, vemo-nos no metro um dia desses!...

(Carlos Pinto Leite)

26/02/2009

Crónicas Do Metro - Do Lado De Lá Da Porta


Corri para apanhar o metro e saltei para dentro da carruagem. Como sairia logo na estação seguinte, mantive-me junto às portas. Voltei-me e, do lado de lá da porta cerrada, encostado ao vidro, um rosto amigo de longa data acenava-me e gesticulava sorridente. Olhos nos olhos, correspondi-lhe também. “Como estás? Tudo bem contigo?”, perguntámos silenciosamente um ao outro. E ambos gesticulámos “Sim, tudo bem! E a família? Também, graças a Deus.” E terminámos “Um beijo para a tua esposa e para o resto do pessoal!” O diálogo não durara mais do que 5 segundos e logo o metro, impiedoso, retomou a sua marcha. A face amistosa foi rapidamente engolida pela escuridão do túnel. A porta de aço e vidro não impedira o gesto e o olhar de falarem o que lhes ia na alma e soubémos exactamente a intenção um do outro. Em 5 segundos apenas.
Os maiores obstáculos à comunicação não são aqueles que se interpõem inadvertidamente entre nós porque, quanto a esses, faremos o que estiver ao nosso alcance para os ultrapassar. São antes aqueles que nós próprios levantamos: o preconceito, a intolerância, a falta de perdão, o orgulho, a incompreensão ou o medo. São invisíveis e nascem dentro de nós e, por isso, mais difíceis de detectar e de remover. E é preciso que os queiramos remover. Mas, antes, há que reconhecer a sua presença em nós. Só depois disso poderemos lidar com eles.

À partida, é muito provável que não nos revejamos num quadro de orgulho, intolerância ou medo, já que é sempre mais fácil apontar os defeitos alheios. Mas uma boa forma de o verificar consiste em analisar com honestidade uma eventual situação de perturbação ou ruptura num relacionamento, seja com um amigo, vizinho, colega ou familiar (um cônjuge, por exemplo) e chegar às suas raízes. Quem sabe se não acabaremos por descobrir que, afinal, as dificuldades e obstáculos a uma boa comunicação começaram… em nós!?
Podemos conviver anos a fio debaixo do mesmo tecto e nunca sermos cúmplices. Ser marido e mulher e viver em mundos à parte. Ser irmãos de sangue e nunca realmente nos conhecermos. Passar a correr uns pelos outros e, como um quadro desprezado num recanto escuro, enfadarmo-nos com o monótono cenário de todos os dias sem nunca reparar na fantástica riqueza dos seus pormenores, apenas revelada por uma aproximação mais atenta e cuidada.
Talvez seja mais confortável deixar tudo como está. Não mexer nas feridas. Não experimentaremos a sensação desagradável de pegar o touro pelos cornos, é certo, mas a nossa existência ficará bem mais pobre e os relacionamentos muito aquém do seu potencial.
Fugir e esconder a cabeça na areia como a avestruz não resolve problemas, apenas os adia. De qualquer maneira, trata-se de um mito, até porque as avestruzes nunca o fazem. Avestruz que se preze e que se depara com um problema não esconde a cabeça no solo. Corre atrás dele até o espantar.


(Carlos Pinto Leite)

24/02/2009

A História da Menina Vermelhinha e do Senhor Amarelo

Esta história é fruto de inspiração – e profunda amizade e cumplicidade - partilhada por ambos, imediatamente transcrita para o papel, no final de um memorável período de férias que marcou irreversivelmente o curso do nosso relacionamento até hoje. Olhando para trás, tem um quê de… profético? Enfim, é a nossa história que só agora vem à luz! Porque há um tempo certo para tudo...

Escorreu uma lágrima de tristeza da tua face. Escorreu, escorreu, espatifou-se no chão e fez pum!... Surgiu também em meus olhos uma lágrima semelhante à tua e o nosso olhar fundiu-se num só. Essas lágrimas regaram-nos os lábios e fizeram brotar palavras em nossos corações. Essas palavras deram frutos doces e suaves. A doçura encheu-nos o coração até ao mais íntimo dos sentimentos e uniu as nossas almas.
Surgiu então uma brisa suave que nos transportou ao fim do horizonte e, mesmo aí, no fim do horizonte, encontrámos aquele Ser Criador que causou o brotar dos nossos sentimentos. Foi então que Ele esculpiu as minhas e as tuas lágrimas em diamantes brilhantes e transparentes. Mas a dureza desses diamantes não tocou os nossos corações.

O seu brilho iluminou-nos o olhar com infinitas cores e matizes, deixando-nos extasiados. No meio desse colorido, vimos um lindo arco-íris estampado no firmamento. Subimos e tu escorregaste como num escorrega, pelo encarnado. Fui atrás e fiquei às voltas no amarelo… Caí de cabeça.
Mergulhámos num prado verde e amplo. Quando cheguei, não te vi mas tu estavas lá! “Sim!... Estou aqui! Estou aqui!” E acenavas a tua bandeira branca para eu ver. O branco fulgurante dessa bandeira cegou-me.
Algum tempo depois, uma luz ténue brilhou no meu olhar e reparei em ti. Foi então que notei que eras a menina de vermelho. Deste-me a mão e apertaste muito, muito! Ai, a minha mão!
Brincámos, rimos e rolámos pelas cores. Subimos, subimos. Perguntei: “Chegaremos ao cume?” Tu disseste: “Sim! E quando estivermos lá em cima, escutaremos sinos a tilintar como no alto de um campanário. “Tlim! Tlim! Tlim! Tlão! Tlão! Tlão!” Esse tilintar ecoou bem dentro dos nossos corações. Quantas surpresas! Íamos descobrindo coisas novas todos os dias e não nos surpreendíamos. “Já viste? Temos tanto ainda por descobrir!!” – disseste tu – “Quantas surpresas ainda nos esperam, de todos os tamanhos, cores e feitios!”
- “Credo! Que monte tão grande!” – exclamei.
- “Vamos começar a abrir?”
- “Ah! Mas são tantas! Por onde vamos começar?”
- “Devagarinho! Devagarinho! Temos muito tempo. Toma, por exemplo, aquela ali, pequenina.”
- “É tão pequenina… Cabe na palma da minha mão!” (envolta num papel de seda branco muito fino).
- “ Mas olha” - disseste tu – “muito mais fino que o papel de seda é essa peça de porcelana muito frágil e delicada. Tem cuidado, sim?”
- “Abre tu agora aquela. Repara que não é muito grande mas de uma beleza sem par!”
- “ Oh! É linda! Abre agora aquela grande! Ali debaixo!”
- “ Que grande caixa! Mas… Repara! Tem outra caixa dentro! E mais outra caixa! E uma outra ainda!...”
- “ Vê o que é que tem dentro!”
- “ Olha! Um lápis e um papel!...”
- “ O que é que diz? O que é que diz?”
- “ Não diz nada. Está em branco.”
- “ Escreve qualquer coisa! Escreve um sonho!”
Desenho um mar cheio de ondas que nos levam de novo ao fim do horizonte. E ali nos encontrámos de novo com o Criador.
Rolou uma lágrima nas nossas faces, só que, desta vez, eram lágrimas de alegria. Um sorriso estampou-se nos nossos lábios. O nosso olhar cruzou-se e fundiu-se através do mar, quieto como um espelho.
-“ Lembras-te?”- perguntaste – “É este o mesmo mar onde nos encontrámos pela primeira vez”.
- “É verdade!”
Rimos e demos gargalhadas. O Criador olhou, gostou, riu também.
E não se arrependeu de nos ter criado como da primeira vez.

Carlos e Fernanda Pinto Leite
31 de Agosto 1991
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